O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu num caso de enorme repercussão que os planos de saúde não terão a obrigação de cobrir exames e procedimentos não previstos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), exceto quando não houver tratamento similar na lista. A decisão levantou a previsível grita de grupos de defesa do consumidor e especialistas em saúde, que viram nela a submissão da Justiça e da ANS aos interesses e à ganância dos planos de saúde, cujos lucros são vistos como abusivos diante do direito universal à saúde estabelecido na Constituição.
Os ataques reverberaram também porque a clientela dos planos está atônita diante dos reajustes autorizados pela ANS neste mês (15,5% em média). A oposição mais veemente veio de associações ligadas a pacientes cujos tratamentos não estão previstos no rol da ANS, como autistas ou portadores de certos tipos de câncer. É esperado que os insatisfeitos levem o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em que pese o drama das famílias que terão mais dificuldade para obter tratamento, a decisão do STJ está correta. Primeiro, por trazer clareza a um universo cinzento. Um estudo anterior à pandemia verificou que, entre 2008 e 2017, as demandas relativas a saúde na Justiça cresceram 130%. Entre 2015 e 2020, resultaram em mais de 2,5 milhões de processos, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Há uma indústria de advogados dedicados a processar os planos de saúde, uma vez recusados tratamentos. É uma situação absolutamente insustentável e injusta para os pacientes. Os planos são incentivados a negar procedimentos, porque sabem que nem todos irão à Justiça, e só quem pode arcar com o custo dos processos obtém acesso ao recomendado.
O segundo motivo para o acerto do STJ é econômico. Ao estipular regras claras, em vez de deixar tudo ao alvitre do juiz de ocasião, a decisão contribui para assegurar maior eficiência ao negócio dos planos e, indiretamente, garantir melhores preços ao mercado (com a queda no custo da judicialização). Evidentemente, a contrapartida é que haja mais afinco da ANS na manutenção de um rol de procedimentos compatível com os melhores tratamentos disponíveis. Em vez de se submeter aos desígnios dos planos, a agência precisará ser rigorosa ao manter uma lista completa e exaustiva. Isso será também do interesse das seguradoras, pois serão obrigadas a cobrir o que não tiver similar nesse rol.
Zelar pelo direito à saúde é dever do Estado. Isso exige recursos abundantes — trata-se de um “direito positivo”, no jargão jurídico-filosófico. Embora a lei brasileira seja deficiente na atribuição desses recursos, o país dispõe de um sistema de saúde público universal e gratuito, o Sistema Único de Saúde (SUS), de qualidade irregular (há áreas de excelência internacional, enquanto o grosso da população é sujeito a condições precárias). Garantir a qualidade do SUS aliviaria a carga que recai sobre a população que busca saúde suplementar. É nisso que o governo deveria investir.
Fonte: O Globo – 11/06/2022
Conteúdo publicado originalmente no O Globo
(https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/stj-tomou-decisao-certa-ao-limitar-cobertura-dos-planos-de-saude.html)