Decretos com revisão entram em vigor em janeiro; alimentos, remédios e combustíveis são afetados
A população de São Paulo começa o ano de 2021 com um onda de aumentos de ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), que tende a elevar os preços de uma longa lista de produtos. A tributação muda para remédios, combustíveis e até os já inflacionados alimentos.
O ICMS é o principal imposto estadual no Brasil, e a revisão das alíquotas em São Paulo faz parte do ajuste fiscal do governo João Doria (PSDB). Segundo empresários, o aumento dos percentuais do tributo vai exigir adequação nos preços dos produtos afetados.
Contrárias ao projeto desde a discussão na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), entidades de classe criticam o fato de as medidas serem implantadas num momento crítico. O ano começa com repique na pandemia, inflação em alta e fim dos auxílios dados pelo governo. Muitas entidades ameaçam ir à Justiça para tentar reverter a implantação das novas regras.
A reforma administrativa aprovada em outubro autoriza o governador Doria a rever benefícios fiscais, como a isenção do ICMS. A medida resultou em um corte de 20% em incentivos.
Na prática, isso significa um aumento da carga tributária.
Assim, alguns produtos que eram isentos de ICMS passarão a ser tributados, e outros produtos que tinham alíquotas mais baixas terão o valor do imposto elevado.
Em produtos como os combustíveis, as novas regras estabelecem um “complemento” à alíquota do ICMS, o que é criticado como um aumento disfarçado da carga tributária. É o caso, por exemplo, do etanol hidratado, cuja alíquota passará dos atuais 12% para 13,3%.
O presidente do sindicato dos postos de São Paulo, José Alberto Paiva Gouveia, diz que não é possível antecipar qual o impacto final no preço, já que a extensão do repasse depende das políticas comerciais das distribuidoras.
Considerando o preço de referência usado pelo estado para o cálculo do imposto durante a primeira quinzena de dezembro, a parcela referente ao ICMS subira de R$ 0,35 para R$ 0,39 por litro, alta de R$ 0,04.
A possibilidade de aumento do ICMS aberta pela reforma de Doria vem sendo usada por Jair Bolsonaro (sem partido) para acirrar o antagonismo político com o governador de São Paulo. Na terça-feira (29), o presidente voltou a criticar a medida.
O governador Doria nega, desde que o embate com Bolsonaro teve início, em outubro, que promova aumento de impostos. Também fala que produtos da cesta básica não estão incluídos na reforma fiscal.
Alguns alimentos essenciais, porém, são afetados. Itens como leite, ovos, farinha de mandioca e ração animal, que eram isentos, passarão a ter alíquota de 4,14%. Queijos e suco de laranja estão incluídos entre os produtos que ganharam um complemento na alíquota, que sobe a 13,3%.
No caso dos medicamentos, segundo a Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), o fim do benefício permite que as alíquotas subam até 18% para produtos como genéricos, remédios usados no tratamento do câncer, equipamentos e insumos para cirurgias e pessoas com deficiência, como cadeiras de roda.
A entidade diz que a medida tem impacto “imediato e direto” sobre o preço dos planos de saúde, já que aumentos de custos são repassados aos usuários. E, como São Paulo concentra parte relevante do parque produtor brasileiro, os efeitos devem ser sentidos em todo o país.
“É um momento ruim, os planos de saúde também terão que pagar essa conta. Está faltando diálogo. O consumidor já vai pagar mais caro agora”, afirma o presidente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), Reinaldo Scheibe.
A Unimed, que tem serviços próprios de saúde, afirma, em nota, que, se a revogação da isenção efetivamente ocorrer, as unidades da empresa com recursos próprios, como hospitais e laboratórios, sofrerão imediatamente os efeitos do aumento da carga tributária.
Outro setor atingido pela decisão é o de TV paga. O presidente da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), Oscar Vicente Simões de Oliveira, afirma que o corte de benefício fiscal irá aumentar o custo do serviço e prejudicar ainda mais a concorrência em relação ao streaming, que hoje é tributado por ISS (Imposto Sobre Serviços).
Setores e empresas afetados ameaçam questionar na Justiça as medidas, alegando que as mudanças transferem ao governador a decisão sobre os incentivos fiscais, que deveriam ser debatidos no Legislativo estadual.
“Essa lei autoriza o governador Doria a reduzir os benefícios fiscais em no mínimo 10%, por decreto, mas não fala qual é o teto”, diz Igor Mauler, advogado tributário da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes). “É um cheque em branco.”
“Redução de benefício é aumento de imposto. Nesse sentido, tem que ser feito em decorrência de aumento direto em lei, não cabendo atribuição ao governador ou alguém que ele indicar”, diz João Paulo Muntada Cavinatto, sócio da área tributária do BMA Advogados.
A Ocesp (Organização das Cooperativas do Estado de SP) reclama que a medida pode gerar dificuldades financeiras para pequenos produtores de alimentos do estado, já que a redução de subsídios abrange também insumos como óleo diesel e energia elétrica para consumidores rurais.
Assim, diz o presidente da entidade, Edivaldo Del Grande, mesmo que Doria mantenha a promessa de não elevar alíquota de produtos da cesta básica, o aumento de custos de produção deve pressionar o preço final dos produtos.
“Não é certo o que o governo de São Paulo está fazendo com produtores e consumidores. Estamos no meio de uma pandemia de Covid-19. Quem come esses itens [ovo e leite]? São os mais pobres. Faz parte da alimentação de quem é mais pobre”, diz Del Grande.
No setor elétrico, o pacote restringe a isenção de ICMS a clientes que consomem até 1.000 kWh/mês na área rural. Uma parcela dos consumidores que usam geração distribuída, como energia solar, eólica e hídrica, também será atingida.
Para o presidente da Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), Marcos Madureira, embora a medida não impacte diretamente o consumidor urbano, poderá encarecer a médio e longo prazo a conta de luz por causa do repasse de alta nos custos de equipamentos, que são afetados.
Cooperativas de diversas cidades querem levar a discussão para os consumidores e estão organizando, para o dia 7, manifestações contra o fim dos subsídios. “Cerca de 80% da cadeia de produção da comida que vai para nossa mesa é formada por pequenos produtores, inclusive agricultor familiar”, diz Del Grande.
Moradora da cidade paulista de Dracena, a 552 quilômetros da capital, a produtora de leite Gislaine Oliveira, 52, diz temer não conseguir repassar o aumento de custos ao consumidor. “O mercado determina o preço do leite, quem vai ter que arcar com esse aumento é o produtor. Para alguns, pode ficar difícil continuar produzindo. Eles não têm como sobreviver”, diz ela.
Em nota, a Secretaria da Fazenda e Planejamento de São Paulo negou que a medida signifique aumento de tributo e afirmou estar disponível para novas conversas com os setores afetados pelo corte nos incentivos.
“A lei 17.293/2020 não implica aumento do tributo, mas é uma autorização legislativa para reduzir benefícios fiscais. O governo do estado promoveu a redução linear de 20% nos benefícios fiscais que são concedidos a diversos setores. Ou seja: 80% do benefício ainda foi preservado”, disse a pasta em nota.
O órgão afirmou ainda que o ajuste foi necessário para compensar perdas de arrecadação causadas pela pandemia.
“O governo estima obter cerca de R$ 7 bilhões que serão essenciais em 2021 para fazer frente às despesas com pagamento de servidores, manutenção dos serviços públicos de qualidade e ampliação da capacidade de investimento do estado”, acrescentou a secretaria.
Fonte: Folha de S.Paulo – 31/12/2020
Por Nicola Pamplona, Tayguara Ribeiro, Sheyla Santos