Em entrevista exclusiva ao EXAME IN, Claudio Lottenberg fala sobre preocupação de que corporativismo do setor impeça avanços ao engessar regulação
“A telemedicina é uma oportunidade de realmente transformar a saúde num direito social. E tenho tentado emprestar minha credibilidade para evitar que essa discussão se transforme num debate corporativista e de restrição de mercado.” A fala é de Claudio Lottenberg, médico oftalmologista em atividade e que há mais de 20 anos atua também como gestor no setor.
Aos 60 anos, é presidente do conselho de administração do Hospital Israelita Albert Einstein desde 2017, após 16 anos como presidente-executivo. Foi secretário da saúde de São Paulo e presidente do Grupo Amil UnitedHealth por três anos. Além disso, é escritor contumaz de livros de gestão no setor, empreendedor e aficionado por inovação em saúde – em tempos sem pandemia, faz de quatro a cinco viagens por ano para pesquisar e acompanhar novidades mundo afora. A lista de predicados para definir Lottenberg vai longe.
Agora, porém, está preocupado com o futuro da telemedicina, segmento pelo qual se apaixonou e passou a trazer inovações para o Brasil. Primeiro para o próprio Einstein, desde que entrou em contato com a modalidade em 2010, em uma viajem à Israel, e mais recentemente como empreendedor. É dono, por exemplo, de um negócio de cabines de autoatendimento médico que podem ser espalhadas pela cidade. “Tem uma de teste no Parque do Povo. A Prevent Sênior vai adotar 20 e a cidade de Anápolis, também.”
A adoção da telemedicina foi autorizada temporariamente no Brasil desde abril do ano passado por meio da Lei 13.989/20, mas apenas durante a pandemia da covid-19. A ideia agora é discutir uma regulamentação permanente no Congresso.
Embora Lottenberg não cite diretamente o Conselho Federal de Medicina (CFM), ele fala abertamente na resistência do próprio setor médico à novidade.
O orçamento da União previsto para o setor de saúde em 2021 é de R$ 126 bilhões, comparado aos R$ 161 bilhões aplicados em 2020, ano em que a pandemia da covid-19 chegou ao Brasil. O setor vive uma grande movimentação também na área privada. Grandes companhias listaram ações na bolsa e há um forte movimento de consolidação em andamento e investimento em tecnologia. Qualquer retrocesso na adoção da telemedicina no país está absolutamente fora do radar de qualquer desses grandes atores, que incluem Rede D’Or, Hapvida, Grupo Intermédica NotreDame, Dasa, para citar apenas os maiores. Somadas, todas as empresas ligadas ao setor de saúde na B3 têm um avaliação de mercado superior a R$ 350 bilhões — ou seja, concentram quase 7% do valor de todas as companhias abertas brasileiras.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Lottenberg. O médico, executivo e empreendedor concedeu a entrevista ao EXAME IN no seu consultório dentro do Einstein, enquanto atendia a diversos pacientes.
O que você tem visto no debate da regulação da telemedicina no Brasil que o preocupa?
São questões que só posso chamar, ainda que não goste desse nome, de corporativistas e de tentativas de restrição de mercado. Estão querendo adotar regras como limitação geográfica para atendimento — com requisitos como de só poder ser praticada por médicos próximos ao paciente — e o impedimento do uso de soluções à distância para primeira consulta, o que fere a legislação sobre a autonomia médica. Tudo isso é um contrassenso que prejudica a inovação e o avanço que a própria telemedicina representa.
Com o que a regulação deveria se preocupar, então?
A legislação deveria ser muito livre. Garantir privacidade de dados, com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Deixar muito claro que prontuário médico pertence ao paciente, mas prever um banco de dados de confiança que possa ser acessado com autorização das pessoas. A telemedicina serve para democratizar o acesso, e não para engessar. A regulação se faz necessária, primeiramente, para que o mercado não seja voraz demais e se torne excessivamente mercantilista. E, em segundo lugar, para preservar a segurança do paciente. É preciso prever a responsabilização do médico e a definição de uma estrutura de remuneração que não prejudique, mas ajude o sistema. E só. Todo o resto é desnecessário. É preciso parar de inventar coisas que só vão estreitar e reduzir o acesso.
Você acredita que a adoção da telemedicina vai diminuir a demanda por médicos?
A dinâmica da nossa profissão está mudando. Mudar uma cultura é algo muito complexo. Mas não haverá subtração de funções. Ao contrário. Na medicina, já está provado que a cada adoção de novas tecnologias, no lugar de diminuir, ela aumenta as demandas do setor. Quanto mais avaliações você faz, de mais médico precisa. Mas libera funções. Por exemplo, antes, questões cirúrgicas agora podem ser feitas por um radiologista intervencionista, que faz acessos guiados ao corpo, para biópsias, drenagens, inserções de catéteres. É uma função que não exista antes. Portanto, a ideia de que cair a demanda por médicos é falsa. Eu me questiono se quem está representando a comunidade médica no debate conhece mesmo medicina. Entende mesmo dos desafios desse setor.
Mas aqui você está falando de eficiência de gestão do público ou do privado?
De tudo. É claro que é preciso de mais dinheiro na saúde. Mas há tempos eu falo que é preciso usar melhor também o orçamento já existente. De tudo que se movimenta em saúde hoje, 1/3 é desperdício com redundância, ineficiências, excessos. Na gestão pública, por exemplo, para sairmos apenas da eficiência da gestão de paciente: sabe quanto custa examinar uma pessoa que está presa? Custa R$ 40 mil. E se for prisioneiro de segurança máxima, ainda mais. Essa pessoa precisa ser transportada com carro especializado e com múltipla escolta. Ou mesmo um trabalhador de uma plataforma da Petrobras que precisava ser resgatado de helicóptero mesmo para questões mais simples.
Mas existem ganhos para os pacientes também?
Claro. Você sabia que 40% dos pacientes de doenças crônicas, como pressão alta, abandonam a medicação após cerca de 50 a 60 dias da última consulta médica? Imagine o que não poderíamos fazer na prevenção de acidentes vasculares, a maior causa de mortes no Brasil. Pense na fila de uma dermatologista na saúde pública. A urticária e o melanoma, que pode ser um câncer letal, entram juntos nesse funil. Tente prever se houvesse um sistema que separasse isso. Outra informação: sabia que cerca de 90% dos atendimentos emergenciais poderiam ser solucionados em uma clínica de atendimento primário? Muitas vezes, o Pronto Socorro é o local onde as pessoas vão aliviar suas angústias. Pensei muito sobre isso quando fui secretário. Lá, as pessoas têm certeza de que haverá um médico. E entram na mesma fila uma pessoa com dor de cabeça, uma facada e ataque cardíaco.
Qual foi seu primeiro contato com a telemedicina?
Foi há 10 anos, em Israel, quando visitando um pronto-socorro médico eu percebi que quase não havia crianças e questionei se havia uma área de pediatria. A resposta é que sim, havia, mas que a maioria das questões eram solucionadas pelo telefone. Quem inventou a telemedicina, portanto, foi o [Alexander] Graham Bell.
Regular a telemedicina vai ampliar o acesso médico do brasileiro?
Eu tenho convicção de que vai. Porque o rico hoje já usa telemedicina. Meus pacientes falam comigo quando eles viajam ou quando eu viajo. Há locais nos Estados Unidos, que se você quer uma avaliação para um problema de alta complexidade, uma segunda opinião, você entra no site, que te dá orientações sobre quais exames enviar, se cadastra e, pronto, você faz uma consulta à distância. Então, é preciso criar uma mecânica que remunere os profissionais por isso adequadamente. Não estou falando de mim, é claro. Depois de tantos anos atuando na saúde, fica claro para mim que é um direito social. É inconcebível imaginar uma sociedade pujante na qual não se dispõe de segurança, saúde, educação e habitação.
Qual problema de não adotarmos a telemedicina da melhor forma?
Alimenta uma estrutura onerosa, onde o grau de satisfação não é bom. Ao teu lado tem alguém infartando, alguém com uma facada. Não tem estrutura focada na necessidade. A telemedicina é um grande elemento que casa com o momento digital da saúde. Tudo isso traz para a gente a oportunidade, ao trabalhar em plataforma, poder automatizar a informação, melhorar a segurança de dados, reduzir a necessidade de mão-de-obra, orientar fluxos e aprimorar processos. Não podemos perder essa chance.
Mas e os riscos de erros e a redução da humanização do atendimento que tanto se falam?
Falam dos riscos como se um médico não pudesse errar em um diagnóstico presencial. O risco é o mesmo. Mas, por isso, na regulação tem que ficar clara a responsabilização médica. Sobre a desumanização, esse debate existiu até quando o estetoscópio foi criado, e os médicos pararam de colocar o ouvido no peito dos pacientes, ou quando os exames de urina foram para o laboratório e não precisava mais ninguém que tivesse de avaliar o cheiro do material. O Einstein realizou entre 4 milhões e 5 milhões de consultas de telemedicina para o SUS durante a pandemia. Se você comparar o NPS [a nota de satisfação atribuída pelas pessoas] de quem vai a um pronto-socorro com a de quem usa telemedicina, vai perceber que quem foi atendido à distância está mais satisfeito. Das pessoas que passam pelo teleatendimento, cerca de 60% retornam em até 45 dias. As pessoas precisam falar, preciso de um retorno. Então, é um cenário tão óbvio que é uma coisa boa e que foi tão útil durante a pandemia, que não posso aceitar que o ambiente regulatório esteja sendo montado sem levar em consideração os aspectos positivos.
E o que precisa ser feito para que o debate vá para o lugar certo?
Acho que a população vai ter de pressionar para que haja avanço. E é por isso que tenho me dedicado a falar, a apontar sobre o assunto em minhas palestras e apresentações. Para que as pessoas entendam as vantagens e possam cobrar do governo.
Fonte: Exame – 30/08/2021
Por Graziella Valenti
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