O mundo pode se abrir para melhorar o atendimento à saúde

Depois do Open Banking e do Open Insurance, governo federal lança luz sobre a possibilidade de abrir as informações de saúde dos cidadãos, com objetivo de ampliar as oportunidades que possam ser oferecidas pelo mercado

Cada cidadão deve ser o dono do seu destino e das suas informações. Cada um deve escolher o que fazer com elas, a quem entregá-las e quais benefícios obter. Esta premissa foi levada em consideração para que o Banco Central e a Susep investissem no Open Finance.

Agora, inspirado por estas medidas, o Ministério da Saúde ventila a possibilidade de criação do Open Health, com a intenção de ampliar a concorrência no mercado de planos de saúde. Segundo informações do Jornal Valor Econômico, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, quer criar esta regulamentação a partir de medida provisória. Segundo o ministro, o compartilhamento de dados de clientes pode levar uma operadora, seja ela nova ou já atuante, a oferecer um plano mais barato para um paciente que eventualmente use pouco hospitais ou outros serviços de saúde.

A teoria pode ser bastante interessante, entretanto, a regulação da saúde suplementar é rígida o suficiente para garantir os direitos dos consumidores. “A proposta ainda é bem incipiente e carece de maior aprofundamento técnico. O IESS vai estudar esse assunto. Já colocamos em nossa agenda de trabalho. Mas, note que o setor de saúde é muito, mas muito mesmo, mais complexo que o setor bancário ou financeiro. A alta inflação que reinou no Brasil por décadas exigiu aumento de agilidade por parte dos bancos. Eles se informatizaram muito cedo, antes mesmo que o sistema dos Estados Unidos”, avalia José Cechin, superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).

Considerando que o País possui mais de 700 operadoras médico-hospitalares e mais de 300 exclusivamente odontológicas, mais de sete mil hospitais, milhares de laboratórios, um número ainda maior de clínicas e quase meio milhão de médicos, haverá ainda muito trabalho para a consolidação dos dados. “Cada uma dessas entidades têm seus sistemas próprios, suas formas de registrar os atendimentos e os procedimentos realizados. É preciso colocar todos esses dados em um sistema único, em nome do indivíduo, com senha de acesso que a pessoa fornece de acordo com seus interesses. O Conecta SUS é uma iniciativa nessa direção de integração dos dados – ainda incipiente. Os dados estão armazenados, mas em sistemas dispersos e escassamente compatíveis. É preciso um barramento para coleta desses dados e compilação em sistema universal. As dificuldades técnicas podem ser facilmente superadas. Mas há que se superar dificuldades, reais ou imaginadas, dos stakeholders”, avisa Cechin.

O presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde – Abramge, Renato Casarotti, lembra que este debate ainda é embrionário e esta discussão, por enquanto, ainda é uma mistura de conceitos. “A ideia do Open Health ventilada pelo Ministro Marcelo Queiroga parece uma derivação do Open Banking. Conversando com assessores do Ministério verificamos que a ideia está muito ligada às informações financeiras, de contraprestações pagas pelos usuários e de sinistros”.

Para Casarotti, é preciso separar os conceitos. A ideia do beneficiário como dono de seus dados e podendo lançar mão deles para buscar uma melhoria para o cuidado que ele acessa, faz sentido. “Concordamos com este princípio, compreendendo os conceitos da LGPD, ainda mais na área da saúde, cujos dados são sensíveis. Mas não é possível fazer este paralelo direto, entre Open Health e Open Banking”, classifica. Porém, ele ressalta que a ideia de ter os dados centralizados, passa pelo conceito do prontuário único, que a pessoa possa compartilhar os dados para navegar entre os sistemas, mesmo para os planos empresariais.

Já há iniciativas nesta linha de criação do prontuário único e eletrônico. “Um fator que limita a criação de um sistema de Open Health é que, em saúde, apenas 20% dos planos são individuais. O restante são planos corporativos, nos quais o empregador não pode abrir os dados individuais”, avalia Casarotti.

Por último, Casarotti ressalta que plano de saúde não é conta bancária e possui uma lógica atuarial muito forte. “Apesar de ser individual, ele tem uma lógica coletiva também. Caso contrário, você corre o risco de fazer uma seleção de risco adversa, por isso acho importante aprofundar a discussão e saber qual é o objetivo que estamos buscando com o Open Health. Se for apenas o aumento da concorrência no setor, talvez esta não seja a ferramenta capaz de promover esta mudança”.

O começo pode ser o prontuário único e eletrônico

A padronização dos prontuários eletrônicos é uma demanda antiga do mercado de saúde, além de ser uma premissa para o Open Health existir. Cechin questiona “como faríamos a troca de informações sem um padrão previamente estabelecido e que “converse” entre todos os elos da cadeia de valor da saúde?”, porque os prontuários eletrônicos existem, mas em padrões diferentes a depender do desenvolvedor/tecnologia.

“É um tema complexo, que exige grande esforço de tecnologia e interoperabilidade. O prontuário único é muito útil principalmente para as pessoas, pois registra toda a sua história de saúde, que pode ser facilmente vista pelo profissional assistente e dessa forma encurtando o tempo de anamnese. Mais do que isso, o registro não esquece e, portanto, a fidedignidade das informações não depende mais da memória da pessoa. Ganha-se em precisão”, afirma o executivo do IESS. 

Porém, esta é uma realidade ainda bastante distante, porque a “conversa” dos prontuários depende também do poder público, que deve não apenas regulamentar como também investir em sua planta, seja em equipamentos ou treinamento para os agentes de saúde.

O presidente da Unimed do Brasil, Omar Abujamra Junior, pondera que a transformação digital tem permeado diferentes setores da economia e da sociedade, e não será diferente no campo da saúde. “A comunicação em rede é um dos grandes motores de transformação do setor. As informações de saúde são geradas ao longo de toda a cadeia – consultórios médicos, clínicas, hospitais e operadoras”. 

“A transformação digital é uma das megatendências do atuais e, certamente, será realidade no setor de saúde, alterando a experiência de cuidado e abrindo possibilidades na coordenação da jornada assistencial e no aumento da efetividade dos sistemas de saúde”, avalia Abujamra. Ele acrescenta, que, no entanto, será preciso definir quais informações devem ser compartilhadas de modo a gerar valor no processo assistencial, de forma consistente. “Não se trata apenas da portabilidade entre planos de saúde. Para o mercado suplementar, também é crucial que o marco regulatório acompanhe essa evolução, tanto na perspectiva de assegurar direitos e o poder de escolha dos beneficiários, como também estabelecer parâmetros claros e comparáveis de qualidade assistencial para subsidiar essa sua escolha e preservar a sustentabilidade do setor”, sinaliza o presidente da Unimed do Brasil.


Healthtech

O setor de saúde também está na mira das novas empresas ligadas à inovação e tecnologia. Nos últimos dois anos uma série de empresas iniciaram suas operações com modelos diferentes dos operados pelo mercado, oferecendo desde coparticipação até planos de telemedicina e gerenciamento de carteiras de saúde corporativas.

Em um debate sobre Open Health, estas empresas podem sair na frente no compartilhamento de informações, uma vez que já nasceram digitais e amparadas em API’s. 

Vitor Asseituno, presidente da Sami, explica que desde a idealização da Sami eles acreditam que os dados de saúde das pessoas devem estar reunidos, seguros e disponíveis para que os profissionais que cuidam dos pacientes possam ter acesso a esses dados e cuidar melhor das pessoas. “Em 2021, fizemos um grande investimento em privacidade de dados de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), e no início de janeiro de 2022 começamos o primeiro hospital interoperável com a Sami trocando dados e permitindo que um nível superior de medicina seja praticado a partir dos dados”.

“Criar um padrão e centralização de dados na saúde pode ter um potencial incrível para o setor privado e também público, levando a melhores decisões de saúde para o sistema e para a população. Na Pipo, conversamos bastante sobre o assunto e como isso possibilitaria um melhor desfecho clínico e acompanhamento da saúde de cada indivíduo. Pretendemos atuar ativamente no tema e auxiliar na construção do melhor modelo”, conta Thiago Torres, Cofundador da Pipo Saúde. 

Torres acrescenta que a Pipo é uma empresa de tecnologia que endereça dores e problemas da saúde no Brasil. “Nascemos com uma infraestrutura digital pronta para suportar discussões, como o Open Health. Isso fará com que a gente consiga estar pronto com mais velocidade e também disponibilizar produtos e serviços para empresas do setor que tenham dificuldade de fazer essa adaptação. Queremos conectar a demanda (necessidade por produtos e serviços de saúde) com a melhor oferta de saúde”, avisa o executivo da Pipo. 

Entretanto, Asseitune, da Sami,  afirma que a adaptação vai depender de como o governo organizar esse projeto, quanto tempo ele vai demorar para ser lançado etc. Naturalmente, uma empresa nativa digital tende a ter vantagens e mais agilidade nesse processo.

Em um ambiente completamente digital, as healthtechs saem com um corpo de vantagem. Afinal elas têm a facilidade de já possuir todos os seus prontuários em formato eletrônico, que pode conversar eventualmente com um modelo público com com outras empresas.

“Existem padrões conhecidos de prontuário, armazenamento ou troca de dados em saúde, como HL7 FHIR, OpenEHR, OMOP e outras siglas do setor. Estamos na torcida e expectativa que o governo utilize padrões reconhecidos mundialmente em vez de criar um modelo próprio, o que dificultaria potencialmente as trocas de dados e tem o risco de se tornar um empecilho em vez de um facilitador”, esclarece Asseitune.

Segundo Torres, da Pipo, já existe um prontuário com todos os dados dos pacientes, que são cruzados com as informações com toda a utilização e custo que eles possuem em cada um de seus benefícios. “Isso nos dá uma visão 360 graus da jornada de saúde da pessoa e não apenas o uso do plano de saúde, mas sim como ele interage com nossos concierges, nosso time de saúde e como utiliza cada um de seus benefícios. Conseguir agregar mais informações e dados trazidos por um modelo público com certeza é uma oportunidade que teríamos muito interesse de aproveitar”, completa.


Mais saúde

José Cechin, do IESS, ressalta que vê áreas em que o Open Health pode trazer ganhos substanciais. “Refiro-me à promoção e disseminação de hábitos saudáveis de vida, que nos dão bem-estar, envelhecimento saudável, evitam o adoecimento especialmente de doenças crônicas, com possíveis impactos no crescimento dos custos”.

Desta forma, e sabedoras de quais pessoas seguem hábitos saudáveis, operadoras podem convidar consumidores para portabilidade oferecendo planos com custos menores, por exemplo. “Os consumidores, sabendo dessa tendência, serão estimulados a seguir esses hábitos. Falo de deixar de ser sedentário, abandonar o uso de substâncias que nos fazem mal, migrar para o padrão alimentar saudável, substituindo o consumo de ultraprocessados por porções diárias de frutas, legumes e verduras, como recomendar importantes sociedades de especialidades do mundo desenvolvido. Esse seria um exemplo de concorrência que favoreceria comportamentos adequados tanto por parte das pessoas quando das operadores. E, por que não dizer, também dos prestadores?”, questiona Cechin.

Esta é a teoria do ganha-ganha aplicada à prática. 

Fonte: Revista Apólice – 14/03/2022

Por Kelly Lubiato

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