Em São Paulo, a saúde é vítima de maus-tratos

No romance A guerra dos mascates, José de Alencar, em crítica à política adotada pelo imperador D. Pedro II, criou uma expressão que se popularizou e atravessou séculos: “uma no cravo, outra na ferradura.” Para manter o animal calmo, o ferreiro ora martela o cravo, que é um tipo de prego, ora a ferradura. Esse ditado popular faz referência a alguém ou instituição que intercala boas e más condutas, mantém posição dúbia ou está sempre “em cima do muro”. Seguindo esse raciocínio, é impossível não fazer uma analogia entre o governador João Doria e suas ações em prol de sua indiferença com o setor da saúde.

O governador do Estado de São Paulo ocupou o espaço de liderança nacional no combate à covid-19, que o presidente Jair Bolsonaro deixou vago pelo seu negacionismo em relação à gravidade da pandemia e por desacreditar das vacinas. É nítida a falta de planejamento e de interlocução entre o governo federal, os estados e os municípios brasileiros durante esta que é a pior crise sanitária em 100 anos. Nesse vácuo, o governador tomou para si a responsabilidade de buscar e encontrar parceiros, como a empresa chinesa Sinovac, e investir na ciência e no desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus.

O resultado todos conhecemos: a Coronavac teve seu uso emergencial aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), chegou a todos os estados da Federação, e só não temos mais doses disponíveis até o momento por falta de matéria-prima, resultado da falta de planejamento do Ministério da Saúde. O governador João Doria poderia hoje estar colhendo todos os louros como defensor-mor da saúde dos brasileiros. Mas, como política no Brasil ainda é a arte do marketing, o governador resolveu protagonizar a expressão criada por José de Alencar e, no auge da crise, aumentou por decreto o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para o setor da saúde.

Um convênio firmado em 1999 (21 anos atrás!) entre o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e os governos dos estados estabelece isenção de ICMS para centenas de produtos para a saúde. Muitos países adotam essa política fiscal com o objetivo de tornar a assistência à saúde mais acessível à população. Na contramão dessa tendência, produtos e medicamentos começaram a ser tributados no estado de São Paulo com alíquota de 18% de ICMS.

Entre esses produtos, há medicamentos para a aids, doenças raras e de combate ao câncer, stents, órteses e próteses ortopédicas, marca-passos, cateteres, entre outros. Segundo cálculos da indústria farmacêutica, alguns medicamentos podem subir mais de 20%. No caso dos dispositivos implantáveis, que é a essência do Convênio 01/99, a aplicação destes 18% ocorre no início da cadeia de fornecimentos. Se todos os custos agregados forem calculados e agregados nesta base maior, a majoração poderá passar dos 30%.

Entidades representativas do segmento têm alertado o governo do estado, em vão, sobre os impactos graves que isso terá sobre o atendimento à população. O aumento de imposto atinge o setor em plena pandemia e com muitos hospitais em dificuldades financeiras. Em 2020, a receita anual dos estabelecimentos privados encolheu entre 17% e 20%, devido ao cancelamento ou adiamento de cirurgias e outros procedimentos eletivos.

Como São Paulo é o estado brasileiro que tem a maior taxa de cobertura do setor de saúde suplementar (praticamente quatro de cada 10 paulistanos, entre capital e interior, têm algum vínculo com operadoras de planos de saúde), muitos procedimentos de alta complexidade são realizados nas instituições privadas sejam elas com ou sem fins lucrativos. O aumento do imposto afetará, em um primeiro momento, justamente esses usuários, pois o impacto, calculado é de cerca de R$ 1 bilhão, terá que ser repassado aos preços. Muitos certamente poderão migrar para o Sistema Único de Saúde (SUS), por não conseguirem mais custear seus planos. Além disso, setores que praticamente são financiados pelo SUS, como o de hemodiálise e a diálise peritoneal, terão um impacto calculado de cem milhões de reais ao ano.

É no mínimo estranho que um governo que se mostra tão preocupado com a saúde da população possa adotar uma medida tão drástica e insensível, que aumenta os impostos de um setor que está em pleno combate à pandemia e se mostrou sempre parceiro do setor público. Assuntos dessa relevância social deveriam ser amplamente discutidos e negociados com a sociedade.

Lamentavelmente, como retribuição deste esforço e parceria e, ainda, apesar dos esforços das entidades representativas, o governo do Estado de São Paulo tem se mostrado irredutível e maltrata a saúde como um todo, pois não consegue entender que não existe saúde pública ou privada, mas sim uma só saúde, pois são vasos comunicantes. Em São Paulo, a expressão criada por José de Alencar cabe como uma luva: “uma no cravo, outra na ferradura.”

*Médico, presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo (SindHosp)

Fonte: Correio Braziliense – 15/02/2021

Por Francisco Balestrin*

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