A desproporcionalidade das multas no setor de saúde suplementar

No processo regulatório, a operação de planos odontológicos acaba sendo prejudicada a cada novo normativo publicado com o objetivo de solucionar questionamento advindo da oferta de planos médico-hospitalares. Isso acontece porque, apesar de serem mercados com comportamentos distintos, são abarcados pela mesma regra, sendo poucas as normas que estabelecem alguma diferenciação.

No caso das multas aplicadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o problema se repete. Em 2016, foi instituído o Grupo de Trabalho Debates Fiscalizatórios. Com reuniões ao longo do ano seguinte, a Diretoria de Fiscalização apresentou possíveis caminhos para um novo sistema de fiscalização e aplicação de sanções pecuniárias para discussão com representantes de operadoras e órgãos de defesa do consumidor, sem levar em conta que as particularidades do segmento odontológico já indicavam tratamento diverso. Após consulta pública e submissão dos resultados à diretoria colegiada, o tema deixou de ser prioridade na ANS, a ponto de não constar na proposta de agenda regulatória do triênio seguinte.

É importante o reconhecimento da competência da ANS no controle, na normatização e na fiscalização do setor de saúde suplementar, embora também seja necessário compreender a pertinência de adequar o valor das sanções impostas à capacidade de pagamento do ente regulado. Por causa disso, o Sindicato Nacional das Empresas de Odontologia de Grupo (Sinog), entidade que representa os planos odontológicos em nível nacional, tem reiteradamente apontado pela necessidade de haver uma análise de impacto regulatório diferenciada para os planos odontológicos e que, no caso das sanções pecuniárias, haja revisão da atual norma que trata das penalidades, com o propósito de instituir um critério de porte econômico que diferencie o segmento de odontologia dos planos médicos.

O referido pleito está em consonância com a Lei nº 9.656, de 1998, que previu que a multa pecuniária a ser fixada e aplicada pela ANS deve variar de acordo com o porte econômico da operadora e com a gravidade da infração, sendo que a regra atualmente em vigor pela Resolução Normativa nº 124, de 2006, apenas prevê diferença de valor da sanção pelo número de beneficiários das operadoras, como se a capacidade de pagamento de uma operadora exclusivamente odontológica com determinado número de beneficiários fosse a mesma de uma operadora médico-hospitalar com esse mesmo quantitativo.

Com enfoque na sustentabilidade do segmento, a matéria está a ponto de sair do papel e ter a devida atenção do órgão regulador. Em novembro de 2020, a ANS publicou a Portaria nº 393, que constitui grupo de trabalho para discutir temas específicos acerca da regulação das operadoras e planos exclusivamente odontológicos.

Além disso, está em vigor o Decreto nº 10.411, de 2020, que regulamenta a análise de impacto regulatório de que tratam a Lei da Liberdade Econômica e a Lei das Agências Reguladoras, exigindo a instituição de agenda de avaliação de resultado regulatório, quando se devem verificar os efeitos decorrentes da edição de um ato normativo, considerados o alcance dos objetivos originalmente pretendidos e os demais impactos observados sobre o mercado e a sociedade, em decorrência de sua implementação.

Assim, haverá possibilidade de demonstrar o impacto significativo nos planos odontológicos e indicar a implementação de regra de porte econômico específica, apartada do modelo de revisão amplo do processo sancionador que o órgão cogitou no passado.

Segundo informações disponibilizadas pela ANS referentes a 2019, o ticket médio dos planos médico-hospitalares foi de R$ 400,09, enquanto dos planos exclusivamente odontológicos foi de R$ 19,76. Essa diferença de mais de 20 vezes na receita advinda da operação de planos de saúde já deveria ser suficiente para compreender que o critério de porte econômico determinado na Lei dos Planos de Saúde não pode ser realizado somente pelo número de beneficiários.

Há outros fatores a serem considerados para não transparecer que reduzir o valor da multa em 20 vezes equilibraria essa relação, devendo ser estabelecido um critério que induza a boas práticas, mas que não onere excessivamente o consumidor, por ser o maior interessado nessa discussão (multas elevadas tendem a aumentar o valor da mensalidade para ser possível o seu pagamento e multas irrisórias não servem ao propósito educativo de induzir a melhora da qualidade da prestação do serviço).

Uma das opções é utilizar do montante disponível de receita após o pagamento das despesas assistenciais (ou seja, após realizar o principal compromisso que é o pagamento à rede prestadora de serviços). Enquanto a sinistralidade média das operadoras médicas, em 2019, foi de 83,2% (o que denota que 16,8% da arrecadação serve ao propósito de honrar com despesas não assistenciais, entre eles o pagamento de multas), nas operadoras odontológicas foi de 46,3%.

Levando em conta o ticket médio com a sobra de receita após o pagamento da rede, a diferença entre as operadoras cai para 6,3 vezes, sendo esse o fator multiplicador que efetivamente demonstra a diferença na capacidade de pagamento entre os dois segmentos. Uma multa por falha na liberação de aplicação de flúor, por exemplo, que hoje é de R$ 80 mil, passaria a ser de R$ 12,7 mil, valor ainda bastante elevado, mas aderente à regra de avaliação do porte econômico e que induz a boa prestação de serviço.

Fonte: Consultor Jurídico – 18/02/2021

Por Virgínia Rodarte Gontijo Couto*

* Virgínia Rodarte Gontijo Couto é advogada especializada em saúde suplementar e assessora regulatória do Sindicato Nacional das Empresas de Odontologia de Grupo (Sinog).

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