Governo tem de reagir ao assédio dos médicos pela indústria farmacêutica

Estudo verificou que 60% dos pediatras aceitam mimos dos fabricantes de fórmulas infantis

O governo federal e as autoridades sanitárias precisam reagir de forma enérgica para coibir o assédio de fabricantes de fórmulas infantis a pediatras e nutricionistas. Reportagem do GLOBO mostrou dados estarrecedores revelados por um estudo realizado por dez instituições científicas de renome, como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade de São Paulo (USP), em maternidades das redes pública e privada do Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto (MG), Florianópolis, João Pessoa e Brasília.

Seis de cada dez pediatras e quase 90% dos nutricionistas recebem vantagens da indústria de substitutos do leite materno durante eventos científicos. O agrado mais comum costuma ser inofensivo, apenas calendários, bloquinhos ou canetas. Em vários casos, porém, há pagamento de inscrição, convites para festas, refeições, passagens e estadias. A prática, também frequente na classe médica e tolerada pela leniência dos conselhos de ética, é contra a Lei 11.265/2006, que proíbe patrocínios financeiros ou materiais a pessoas físicas.

É comum ouvir de pediatras ou médicos de outras especialidades que os “patrocínios” em nada afetam suas decisões em hospitais e consultórios. É um argumento ridículo. Mesmo que a justificativa possa ser plausível, o conflito de interesse é óbvio e seria condenado em qualquer categoria profissional. De um lado, a saúde dos pacientes, que devem receber recomendações independentes. De outro, o interesse comercial de fabricantes de produtos, que oferecem agrados para interferir nessas recomendações. Se o “patrocínio” fosse inócuo, não existiria. Fabricantes de fórmulas infantis e laboratórios farmacêuticos não são conhecidos por jogar dinheiro pela janela.

Ao GLOBO, Cristiano Boccolini, pesquisador da Fiocruz e um dos autores da pesquisa, afirmou haver relação entre a ação das fabricantes de fórmulas infantis e o avanço insatisfatório do Brasil na amamentação materna. Nas últimas décadas, o aleitamento materno exclusivo até os seis meses de idade cresceu, mas ainda está em torno de 46%. Pelos parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS), para o desempenho ser considerado bom, teria de estar entre 50% e 89%.

Governo, Conselho Federal de Medicina e Conselho Federal de Nutricionistas não podem ser coniventes com as fabricantes de substitutos do leite materno que desrespeitam a lei, com os profissionais que fingem acreditar que aquele hotel ou passagem aérea são mesmo de graça e com essa cultura deletéria, permissiva e leniente, que contribui para deteriorar a saúde brasileira. Não há distinção ética entre esse comportamento e o dos políticos e funcionários públicos corruptos que todo profissional de saúde, como os demais brasileiros, adora criticar.

Fonte: O Globo – 22/08/2022

Conteúdo publicado originalmente pelo O Globo
(https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2022/08/governo-tem-de-reagir-ao-assedio-dos-medicos-pela-industria-farmaceutica.ghtml)