A aplicação da função social do contrato no reajuste por faixa etária (variação por faixa etária — VFE) nos planos de saúde possui grande relevância no sistema de saúde suplementar brasileiro, por alguns motivos. O mutualismo, por exemplo, é fundamental para a continuidade, manutenção e sustentabilidade das carteiras de planos de saúde, e consiste numa contribuição de um conjunto de pessoas para o benefício individual de cada um dos contribuintes, protegendo principalmente o consumidor idoso. A incorporação de risco das operadoras é outra problemática, atualmente regulamentada pela Resolução Normativa nº 63 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que versa justamente sobre a VFE e cuja jurisprudência não está pacificada.
A função social do contrato na questão do reajuste de preços por faixa etária é tratada pelos tribunais como uma questão de simples aplicação de regras oriundas de uma regulamentação específica, buscando a relação com o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor. O presente artigo propõe que tal regra deveria ser tratada além da ótica de tutela de interesse coletivo, considerando também a primazia da realidade, com a sustentabilidade do sistema de saúde, e a boa-fé contratual.
Imperioso destacar que, dada a natureza jurídica do contrato de plano de saúde, ainda que constitua direito do cidadão a liberdade de contratar e tal direito encontre limitação no princípio da função social, o Código Civil se preocupou em tutelar o interesse da liberdade econômica na relação entre particulares. De modo que dispõe, como contrapeso ao princípio da função social do contrato, o princípio da intervenção mínima do Estado e a excepcionalidade da revisão contratual.
É na contratação de planos de saúde que nasce a dicotomia de contratos individuais e/ou familiares e contratos coletivos empresariais, com mesmos objetivos, mas com aspectos bem diferentes, e cuja aplicação do princípio da função social é um desafio atemporal, dada a sua própria forma de realização — contrato de adesão.
O contrato de adesão é aquele cujas cláusulas são previamente estipuladas por uma das partes de tal sorte que a outra parte, na necessidade de contratar, aceita todas as condições em bloco, sem o direito de debater ou mesmo modificar as imposições constantes do instrumento negocial, podendo, quando muito, discutir a abusividade das cláusulas.
Nesse diapasão, surge a problemática da necessidade de estabelecimento da segurança jurídica frente à interpretação das cláusulas contratuais, enfrentados tanto pelos particulares — consumidor e operadora — quanto pelo Poder Judiciário.
Ao considerarmos apenas os contratos coletivos — aqueles realizados entre operadora e pessoa jurídica empregadora —, a existência de disposição específica da ANS acerca dos reajustes contratuais, embora tenha efeito direto na tutela dos direitos do beneficiário final (consumidor), esbarra na relação de prestação de serviços entre os particulares.
É por esse motivo que, a fim de manter o equilíbrio da relação contratual e, simultaneamente, proteger a aplicação da função social dos contratos de plano de saúde, a ANS estabeleceu resoluções normativas específicas acerca dos índices de reajuste contratual anual, de acordo com o número de beneficiários, que não se confunde com a correção objeto da análise.
Além disso, o número de ajuizamento de demandas sobre reajuste de planos de saúde cresce a cada dia, causando uma carga processual maior do que o Superior Tribunal de Justiça pode analisar. Consequentemente, torna a tramitação cada vez mais lenta. Por essa razão, o sistema dos recursos repetitivos, trazido como inovação do Código de Processo Civil de 2015, tem sido crucial.
Por essa razão, o Superior Tribunal de Justiça realizou audiência pública, em 10 de fevereiro de 2020, para discutir o Tema Repetitivo 1.016, o qual afetou seis recursos especiais que tratam da validade da cláusula de reajuste por faixa etária nos planos de saúde e do ônus da prova da base atuarial da correção em contratos coletivos.
Um ponto bastante abordado na audiência foi a conduta da ANS em seu papel de fiscalização das operadoras de planos de saúde, principalmente com relação à diluição do custo no aumento de faixa etária no cálculo atuarial.
Raquel Marimon, diretora do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA), manifestou sua opinião ressaltando que existe uma parcela desse reajuste que é composto pelo aspecto técnico. Trata-se da inflação médica, que tem a função de reconhecer a variação na demanda, na quantidade de vezes e intensidade em que as pessoas precisam fazer uso daquele recurso.
Marimon ainda citou a RDC nº 28 sobre o tema, lembrando que as variações de preço por faixa etária das tabelas de vendas deverão manter perfeita relação com as decorrentes dos valores informados na coluna do valor comercial da mensalidade e com os percentuais de reajuste por mudança de faixa etária expressamente estabelecidos em contrato.
Muito embora as demandas ajuizadas por beneficiários contra as operadoras postulem, em maioria, pela abusividade na aplicação de reajuste do preço das mensalidades em decorrência da mudança de faixa etária, alegando a nulidade da cláusula contratual que prevê tais reajustes, até o momento, a ANS não se manifestou contrária à sua utilização nos contratos coletivos — não se aplicando tal conclusão em relação aos contratos individuais e/ou familiares, até mesmo porque as operadoras estão agindo de acordo com o seu legítimo direito com base nas normas e legislação vigente.
Na contramão da alegada abusividade, a agência, em sua função regulatória, fornece mecanismos asseguradores da aplicação do reajuste nos moldes legais por meio de suas resoluções normativas, protegendo o público idoso e tutelando a aplicação da função social do contrato.
Uma vez obedecido o princípio da boa-fé contratual — manifestado pela apresentação de forma clara e objetiva dos critérios de correção e memória de cálculo, pelas operadoras aos beneficiários —, por meio de cláusula que estabeleça as faixas etárias para efeito de reajuste do prêmio, não há de se falar em abuso e perda da função social.
Por fim, tanto o reajuste do preço em razão da adequação da faixa etária, quanto o anual (desde que tenham previsão contratual) são autorizados pela ANS e não contrariam a regulamentação diversa do setor. Todavia continuarão encontrando divergência nas decisões dos tribunais até que haja pacificação em relação ao acórdão a ser proferido pelo Superior Tribunal de Justiça após o julgamento do Tema (IRDR) nº 1.016.
Fonte: Consultor Jurídico – 23/02/2022
Por Camila Castioni*
*Advogada e DPO da ABRAMGE, especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD) e tutora de Habilitação em Seguros pela FGV Conhecimento.
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