ANS incentiva contratação de resseguros por operadoras de planos de saúde

Resolução da Susep que respalda a operação é contestada no STF e divide o setor regulado pela autarquia

Depois de ter participado ativamente na busca pelo amparo regulatório da operação, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem incentivado a contratação de resseguros por operadoras privadas de planos de saúde de qualquer modalidade. Até abril deste ano, essa negociação direta estava restrita às seguradoras.

O primeiro gesto institucional da agência nessa direção foi a realização de um webinar, em agosto, para sanar dúvidas a respeito da operação. Entre os convidados, estavam representantes da Superintendência de Seguros Privados (Susep), autarquia que regula o mercado de seguros e resseguros, e da Federação Nacional das Empresas de Resseguros (Fenaber).

O diretor de Normas e Habilitação das Operadoras da ANS, Paulo Rebello, disse em entrevista ao JOTA, nesta semana, que a possibilidade traz para a saúde suplementar equidade em relação ao mercado de seguros gerais. Antes, apenas as seguradoras especializadas em saúde tinham essa garantia.

Também estão sob regulação da ANS as operadoras registradas nas seguintes categorias: administradora de benefícios; cooperativa médica; cooperativa odontológica; medicina de grupo; odontologia de grupo; autogestão; e filantropia.

“O resseguro é relevante para setores sujeitos a significativas flutuações, como o setor de planos de saúde. É particularmente importante em períodos atípicos, como quando ocorrem surtos de doenças como a Covid-19, crises econômicas ou outro tipo de situação excepcional”, disse Rebello.

Como importante instrumento de gestão de riscos, na avaliação do diretor, o resseguro suaviza o fluxo de pagamentos e aumenta a previsibilidade financeira das operadoras. Na ponta, os beneficiários podem ser favorecidos com maior garantia na assistência à saúde e possível aumento da oferta de produtos.

“A expectativa é de melhoria da governança dessas empresas e concorrência no setor de saúde suplementar, com consequente ganho para os beneficiários”, afirmou.

Mudança da Susep

A contratação direta de resseguros por operadoras de plano de saúde foi assegurada com a publicação da Resolução CNSP 380, no mês de março.

O Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) é presidido pelo Ministério da Economia, sendo composto ainda por integrantes do Ministério da Justiça, da Susep, do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários.

No texto, as operadoras de planos privados de assistência à saúde passam a ser equiparadas às sociedades seguradoras para fins de contratação direta de resseguros, cabendo à Susep a supervisão dessas operações, sem prejuízo das atribuições da ANS.

A Susep também avalia, assim como a reguladora da saúde, que posicionamento proporcionará maior equilíbrio e isonomia entre os players do setor. Ambas descartam qualquer insegurança jurídica relacionada à operação.

“Era algo que há tempos vinha sendo demandado pelos mercados de saúde privada, previdência complementar e resseguros, indo ao encontro inclusive dos anseios dos próprios órgãos supervisores”, afirmou a superintendência à reportagem.

A alteração, no entanto, é contestada no STF pela CNSeg, representando o setor de seguros.

Documentos obtidos pelo JOTA por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que a busca de segurança regulatória para a contratação de resseguro por operadoras de planos de saúde é antiga.

Apesar de ter sido iniciada anos antes, foi retomada em 2017, pelo ex-diretor da ANS Leandro Fonseca, à época titular da Diretoria de Normas e Habilitação das Operadoras (DIOPE).

Na ocasião, a Procuradoria Federal junto à ANS encontrou dois entendimentos dissonantes da Procuradoria Federal junto à Susep sobre o tema. O imbróglio envolve diferentes interpretações da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

O art. 35-M da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998) diz que: “As operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei poderão celebrar contratos de resseguro junto às empresas devidamente autorizadas a operar em tal atividade, conforme estabelecido na Lei nº 9.932, de 20 de dezembro de 1999, e regulamentações posteriores.”

A lei citada no texto do artigo, porém, foi revogada pela Lei Complementar nº 126, de 2007, que trata sobre a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, as operações de co-seguro, as contratações de seguro no exterior e as operações em moeda estrangeira do setor securitário.

Em 2008, a Susep entendeu que a lei complementar disciplinou inteiramente a matéria do resseguro, ocasionando a revogação tácita do art. 35-M da Lei dos Planos de Saúde.

A avaliação tem como base o art. 2º, § 1º da LINDB, que dispõe: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

A partir dessa interpretação, a conclusão foi que a lei complementar não prevê a autorização para que as operadoras de planos de saúde, em todas as suas modalidades, possam celebrar o contrato de resseguro.

Já o segundo entendimento da Susep, de 2012, foi que o art. 35-M da Lei dos Planos de Saúde seria especial em relação à lei complementar.

Dessa forma, não teria havido a revogação tácita do dispositivo, de acordo com o art. 2º, § 2º da LINDB, que diz: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.

Consultada pela Federação Nacional das Empresas de Resseguros em 2016, a Susep reforçou o primeiro entendimento, de 2008.

Em abril de 2018, a Procuradoria Federal junto à ANS recomendou que, caso houvesse interesse da agência em esclarecer a questão, uma nova consulta deveria ser feita à Susep. Já na cadeira de diretor-presidente substituto, Leandro Fonseca consultou a autarquia no mês de outubro do mesmo ano.

O primeiro parecer da Susep em resposta ao pedido da ANS, de março de 2019, foi contrário à possibilidade. No entanto, o então titular da Coordenação Geral de Monitoramento de Conduta (CGCOM) da Susep, Diogo Ornellas, solicitou a reavaliação da consulta no mês de maio.

Em setembro de 2019, o parecer de março foi rejeitado e o entendimento pela viabilidade de contratação de resseguros por operadoras de planos de saúde em todas as modalidades foi fixado pela Coordenadoria-Geral de Assuntos Finalísticos da Susep.

“Com a devida venia, SUGIRO o não acolhimento do PARECER n. 00133/2019/COAFI/PFE-SUSEP-SEDE/PGF/AGU, por não espelhar, a nosso sentir, a melhor orientação sobre o tema, OPINO pela aprovação da minuta de resolução de que tratam os autos, inclusive com a inclusão, em seu texto, visando a conferir tratamento igualitário a quem se mostra na mesma situação jurídica, das operadoras de planos de saúde, conclusão essa que exaro na forma dos arts. 37 e 38 da Lei nº 13.327/2016, da Lei Complementar nº 73/93 e dos arts. 131 e 133 da Constituição”, diz a conclusão.

A minuta da resolução aprovada nesse documento foi submetida a consultas públicas. Desde essa fase, houve registro das divergências entre entidades representativas do setor regulado pela Susep.

ADI no STF

Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) datada de abril, a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg) argumenta que a resolução da Susep tem natureza jurídica de ato normativo e inova na regulação do Sistema Financeiro Nacional.

A CNSeg é uma associação civil que congrega quatro entidades representativas de empresas dos seguimentos do setor de seguros. Entre elas, está a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), a qual estão associadas as principais operadoras registradas na modalidade de seguradoras especializadas em saúde na ANS.

“Mesmo não estando estruturadas e autorizadas a funcionar como seguradoras, na forma da lei, tais entidades poderão afastar a atual estrutura jurídico-negocial das operações – e inerentes às mesmas, como adiante se verá – para se garantirem diretamente com os resseguradores. Na via reflexa, ainda em caráter inovador, a Resolução permite que os resseguradores passem a atuar como se fossem companhias seguradoras, o que é expressamente vedado pela lei”, diz a petição inicial da CNSeg.

Na condição de amicus curiae, a Fenaber pediu que a ADI seja julgada improcedente. A ANS, por sua vez, apoiou o entendimento da Susep e afirmou, ainda, que o setor de saúde suplementar precisa manter a sustentabilidade após a pandemia da Covid-19.

“Com o término da crise sanitária, o País permanecerá com milhares de beneficiários de planos de saúde com sequelas do vírus. Mais do que nunca, a sustentabilidade do setor demanda uma atenção especial e os instrumentos trazidos pela Resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados mostram-se relevantes”, afirmou a Procuradoria Federal junto à ANS.

Em resposta à reguladora da saúde, a CNSeg afirma, na ação: “A ANS dança no mesmo ritmo da inconstitucionalidade implementada pelo CNSP. Seu arrazoado é um esforço político para justificar a ‘equiparação’ realizada pela Resolução CNSP nº 380/2020 a partir de uma série de pretensos fundamentos econômicos”.

Antigo relator do processo, o ministro Celso de Mello, concedeu vistas à Procuradoria-Geral da República no dia 28 de agosto. Após a aposentadoria do então decano da Corte, o recém-nomeado ministro Nunes Marques é o novo relator.

Capital regulatório

A resolução publicada pela Susep é importante para a ANS no contexto de modernização das regras de capital regulatório.

Segundo a DIOPE, as operadoras que contratarem resseguro para operação de planos de saúde podem reduzir as exigências de ativos garantidores e de margem de solvência proporcionalmente ao risco que for ressegurado.

Os efeitos dessas operações influenciarão as exigências de capital de riscos de crédito e de subscrição, regulamentados pela RN 451/2020.

Para explicar como fica, na prática, o diretor Paulo Rebello usa como exemplo uma operadora que comercializa um plano coletivo empresarial.

“Para cada R$ 100 recebidos de contraprestações nos últimos 12 meses desse plano, deve ser mantido em capital de risco cerca de R$ 11 para fazer frente ao risco de subscrição, conforme o modelo definido, além do valor a ser cobrado de riscos relacionados às provisões de sinistro”, explicou.

Nesse cenário, segundo Rebello, caso haja o repasse total do risco da apólice, não haverá mais exposição ao risco de subscrição porque as variações serão arcadas pela resseguradora. Dessa forma, restará o risco de crédito com a resseguradora.

O risco de crédito teve a regulamentação aprovada pela diretoria colegiada da agência no dia 3 de novembro.

“Para esse risco, para cada R$ 100 a receber de um ressegurador, aproximadamente R$ 2 devem ser mantidos em capital. Logo, caso haja um evento e a resseguradora seja acionada, a operadora terá para esse recebível uma quantia proporcionalmente menor de risco a ser cobrada”, detalhou o diretor.

Sustentabilidade e desenvolvimento

Tanto a ANS quanto a Susep acreditam que a celebração de contratos entre operadoras e resseguradoras tem potencial para aumentar a sustentabilidade na saúde suplementar e incentivar o desenvolvimento dos setores regulados.

“Para as operadoras de pequeno porte, com carteiras menores, a lei dos grandes números nem sempre é uma verdade, o que em termos relativos aumenta a volatilidade em torno dos valores esperados de pagamento. Logo, uma única internação de paciente grave por longo período pode ser altamente impactante. Para esses casos, se houver uma operação de resseguro, parte ou a totalidade deste risco seria assumido por um ressegurador”, avaliou Rebello.

Além disso, para o diretor, outro benefício é a possibilidade de diversificação de riscos para o setor. “Atualmente, uma operadora que atua em determinada cidade, estado ou região sofre diretamente os impactos de eventos locais. Uma operação via resseguro permite para o setor que os riscos de operadoras de diferentes locais sejam diversificados em um portfólio mais amplo”, explicou.

Questionada sobre como a mudança pode afetar o mercado das seguradoras, a Susep respondeu que a resolução traz “sinergias e complementaridade às operações dos mercados de seguros saúde e resseguros”.

Para a superintendência, o novo cenário será benéfico para o setor regulado, estimulando o crescimento do mercado de resseguros, considerado tímido no Brasil se comparado a outros países.

“A alteração tenderá a atrair novos players resseguradores, incluindo internacionais, que com suas respectivas capacidades econômico-financeiras e conhecimento (tecnológico, inclusive), apoiarão significativamente no desenvolvimento do setor de seguro saúde privado”, informou a Susep.

Esse impacto positivo, na avaliação da autarquia, também deve se estender aos corretores: “Entendemos que uma nova janela de oportunidades e negócios se abre, na medida em que possibilita a atuação de corretores de resseguros na intermediação destes novos negócios”.

A ANS ainda não conseguiu avaliar os reflexos da medida. No fechamento do 1º trimestre de 2020, apenas a Sompo e a SulAmérica, ambas seguradoras especializadas em saúde, informaram à agência créditos a receber com resseguradoras. No 2º trimestre, somente a SulAmérica informou o recebimento de créditos.

Preços proibitivos

Na avaliação do superintendente executivo da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Marcos Novais, a possibilidade de contratação direta é positiva para as operadoras, mas os resseguros ainda possuem preços proibitivos.

Outro obstáculo para a popularidade da negociação, na visão do executivo, é dificuldade de precificação do serviço devido às particularidades do setor de saúde, sobretudo quanto à imprevisibilidade de gastos com procedimentos de cobertura obrigatória.

“Normalmente, no resseguro, há um limite de cobertura. Na saúde, não há valor máximo. Isso afugenta um pouco os resseguradores, mas estamos trazendo de forma mais efetiva para a discussão”, afirmou Marcos Novais.

Entre os associados da entidade, o interesse não é unânime, mas a tendência é que haja aumento na procura por resseguros a longo prazo. “Alguns chegaram a buscar no passado, alguns voltaram a pesquisar resseguradoras com a Susep. Eu não tenho dúvida de que o mercado vai crescer, mas demora um pouco”, avaliou.

Para Novais, a resolução publicada pela Susep está alinhada aos princípios da liberdade econômica e deve ser mantida.

“Não dá mais para a gente colocar intermediário em tudo. A Susep não proibiu as seguradoras de atuarem na negociação, deixou essa escolha livre. Eu acredito até que muitas das relações ainda serão intermediadas”, disse.

Contratos sob medida

Convidado pela ANS para o webinar realizado em agosto, o diretor Financeiro e de Operações da Federação Nacional das Empresas de Resseguros (Fenaber), Frederico Knapp, explicou que as resseguradoras fazem contratos sob medida.

“Cada contrato é um contrato. Não existe uma receita de pão. Cada necessidade de cada operadora vai ser avaliada na precificação. Você vai estruturando o contrato do resseguro que vai ser avaliado. Claramente, cada uma vai fazer um ajuste necessário”, explicou.

Kanapp também considerou a possibilidade de haver agrupamento de empresas para a contratação de um único resseguro, o que poderia favorecer operadoras de menor porte.

“Vai depender muito da ANS, de como a gente pode estruturar. Do ponto de vista do ressegurador, não vejo impedimento em colocar 30, 40 operadoras dentro de um contrato único contemplando um percentual específico daquele prêmio. Tudo pode ser discutido”, esclareceu.

Fonte: JOTA – 13/11/2020

Por Manoela Albuquerque

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