Medicamentos devem ser incluídos no SUS de forma criteriosa, observando a relação entre preço e o benefício oferecido
Projeto em tramitação no Congresso para obrigar o SUS a fornecer a pacientes de atrofia muscular espinhal todas as terapias registradas no país levanta, mais uma vez, o debate sobre judicialização da saúde. Diante da limitação de recursos, autores argumentam que a adoção de novos tratamentos de alto custo deve ser bastante criteriosa, a cargo de profissionais especializados, levando em conta critérios científicos e racionais, como a relação entre o preço e os benefícios oferecidos.
A pandemia de Covid-19 trouxe enorme visibilidade para discussões sobre escassez de recursos e justiça distributiva em saúde. Como alocar leitos de UTI quando o sistema de saúde colapsa pelo aumento abrupto da demanda? Quem deve ser imunizado quando há vacinas suficientes apenas para uma fração da população? Essas foram questões amplamente debatidas nos momentos mais severos da pandemia.
No entanto, é um erro acreditar que escolhas difíceis são feitas apenas em contextos de catástrofe. Mesmo em países ricos, existe um crescente descompasso entre o que pacientes esperam e o que sistemas de saúde efetivamente oferecem.
Devido à insuficiência de recursos, não é incomum que tratamentos potencialmente benéficos sejam negados ou postergados.
As necessidades e o custo em saúde crescem em ritmo maior que os orçamentos por diversas razões. Uma população mais longeva e que, portanto, precisa de atenção em saúde com mais frequência e por mais tempo é certamente parte da explicação.
Contudo, estudos recentes apontam que a introdução de novas tecnologias, e medicamentos em particular, é a maior fonte de pressão financeira.
Ao contrário do que ocorre em outros setores, na saúde o avanço tecnológico tende a aumentar custos, e não reduzi-los: costuma ser um aditivo às intervenções existentes, não um substitutivo (por exemplo, um novo remédio para câncer não necessariamente substituirá as terapias existentes, mas será adicionado a elas).
Além disso, o custo de novas tecnologias aumenta em ritmo impressionante. Um relatório da Organização Mundial da Saúde mostra que o preço atual dos novos medicamentos oncológicos é dez vezes maior que o daqueles lançados há uma década.
O recorde de medicamento mais caro do mundo tem sido quebrado em velocidade cada vez maior. Em 2016, o Spinraza (para atrofia muscular espinhal, AME) ostentou o título, com um custo de US$ 750 mil por paciente no primeiro ano de tratamento; em 2019, foi ultrapassado pelo Zolgensma, recomendado para a mesma doença, que entrou no mercado por um valor de mais de US$ 2,1 milhões.
O preço, porém, raramente é proporcional aos ganhos oferecidos aos pacientes. O já mencionado estudo da OMS aponta que os novos medicamentos oncológicos geralmente trazem benefícios clínicos pequenos, com aumentos de sobrevida contados em dias ou meses, e não raro com uma qualidade muito ruim devido aos seus efeitos colaterais.
Um estudo mais recente afirma que quase metade das novas drogas para câncer aprovadas na Europa não possui evidência de ganho substancial em qualidade ou tempo de vida. Uma análise do Spinraza e do Zolgensma publicada na revista Science, uma das mais prestigiadas publicações científicas do mundo, identificou apenas benefícios “modestos” para pacientes com AME, apesar do custo altíssimo desses medicamentos.
Sistemas de saúde, portanto, precisam ser criteriosos em decisões sobre custeio de tratamento. Quando recursos são escassos e são múltiplas as necessidades, o custo de um tratamento não é só o que se gasta para adquiri-lo. É também o que se deixou de ganhar em saúde com um outro uso desses recursos (o custo de oportunidade).
Incorporação de novas tecnologias pode retirar recursos de outros serviços, como medidas preventivas, atenção primária e serviços hospitalares. No Brasil, sobretudo devido às drogas de alto custo, o gasto com medicamentos teve um aumento real de 42% em dez anos, consumindo uma parcela cada vez maior do orçamento da saúde.
Por isso, as gestões têm adotado a avaliação de tecnologias em saúde (ATS) para informar suas decisões. ATS é um processo multidisciplinar que envolve a análise da melhor evidência científica sobre efetividade e custo para determinar se um tratamento é custo-efetivo (isto é, se os ganhos em saúde proporcionados justificam sua adoção, dado o orçamento total disponível). Então, com base em critérios pré-estabelecidos, chega-se a uma recomendação quanto ao seu custeio.
Tal tarefa, dada a sua altíssima complexidade, cabe a órgãos especializados e deve ser executada por meio de um processo transparente, aberto à participação social e que ofereça razões fundamentadas para as recomendações.
A ATS previne o gasto excessivo com tratamentos de alto custo que trazem ganhos pequenos —e, portanto, têm alto custo de oportunidade. É injusto e antiético financiar tecnologias com evidência fraca de efetividade, ou pouco efetivos, mas extremamente caras, quando há intervenções efetivas de baixo custo que não são ofertadas pela escassez de recursos.
A ATS também permite identificar e aumentar a oferta de tratamentos custo-efetivos, mas subutilizados. Ela ainda dá poder de negociação para que sistemas de saúde exijam da indústria farmacêutica preços mais adequados aos benefícios proporcionados.
A ATS se iniciou em países de renda alta —como Noruega, Austrália e Inglaterra—, temerosos de que a pressão financeira decorrente do aumento do gasto com novos medicamentos pudesse reduzir a qualidade do serviço prestado à população e ameaçar a sustentabilidade de seus sistemas de saúde.
Em países de renda baixa e média, a importância da ATS é ainda mais acentuada, já que possuem orçamentos menores e ainda lutam para ofertar o básico para suas populações.
No Brasil, a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) é o órgão de ATS responsável por fazer recomendações sobre incorporação de tecnologias no SUS. Suas avaliações seguem um processo administrativo que exige uso de evidência científica, transparência, participação social e respeito a prazos.
A criação desse órgão, em 2011, foi um avanço para o SUS. No entanto, a sua centralidade para informar decisões sobre incorporação de tratamentos está em jogo.
Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para obrigar o SUS a fornecer aos pacientes de AME acesso gratuito a todas as terapias gênicas registradas no Brasil. Isso inclui Zolgensma, Spinraza e outros medicamentos eventualmente aprovados pela Anvisa.
O registro da Anvisa permite que um tratamento seja comercializado no Brasil, mas é menos exigente que a ATS na avaliação da efetividade, não leva em consideração custo e impacto sobre o SUS e não compara um tratamento novo com alternativas terapêuticas, por vezes mais baratas e efetivas.
Esse projeto, se aprovado, permitirá que tratamentos de altíssimo custo passem por cima da ATS. O impacto orçamentário de universalizar o acesso ao Zolgensma foi estimado em quase R$ 5 bilhões pelo Ministério da Saúde.
Para colocar esse número em contexto, apenas o Zolgensma custaria o equivalente a um quarto de todo o orçamento da Saúde para medicamentos.
Ademais, está na pauta do STF a definição sobre em que circunstâncias o SUS pode ser condenado a fornecer tratamentos não incorporados. Os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes sugeriram que os tribunais só deveriam ordenar o fornecimento de tratamentos que fossem recomendados pela Conitec. Se essa tese prevalecer, a palavra final sobre o financiamento de tratamentos será devolvida ao sistema de saúde.
Caso esse entendimento não seja aceito pela maioria da corte, a judicialização da saúde continuará a ser utilizada para, baseada na avaliação leiga de juízes, condenar o SUS a fornecer tratamentos não recomendados pela ATS.
Isso já acontece com alguma frequência. No Paraná, por exemplo, dois dos três medicamentos judicializados com maior impacto sobre o orçamento da saúde haviam sido rejeitados pela Conitec.
Esse texto não argumenta contra a incorporação de qualquer tratamento em específico. Apenas defende que decisões sobre custeio devem passar pela avaliação da Conitec e, consequentemente, feitas por profissionais especializados, baseadas em ciência, e aplicando critérios racionais de forma consistente e transparente.
Tratamentos devem ser financiados porque se mostram efetivos e têm um preço proporcional ao benefício oferecido, e não devido à capacidade da indústria de mobilizar juízes e legisladores para venderem seus produtos ao SUS pelo preço que quiserem, sem se importar com o impacto disso sobre os outros usuários do sistema.
A pandemia nos mostrou a importância de distribuir recursos em saúde de forma justa, pensando em toda a população. Se aprendemos bem essa lição, então o foco deve estar em melhorar e dar mais centralidade à ATS no Brasil.
Fonte: Folha de S.Paulo – 22/10/2021
Por Daniel Wei Liang Wang e Kalipso Chalkidou
* Daniel Wei Liang Wang: Professor de direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
*Kalipso Chalkidou: Professora do Imperial College London e diretora e fundadora no NICE International (Reino Unido).
Poderá gostar também
-
Barroso libera piso da enfermagem, mas abre brecha para setor privado por “preocupação com eventuais demissões”
-
Juíza proíbe clínicas de pedirem reembolso em nome de pacientes
-
Quadrilha do ‘golpe do boleto’ roubou R$ 4 milhões em um ano
-
Não é possível a cessão de direitos de reembolso de despesas médicas em favor de clínica particular
-
Despesas com saúde sobem rápido e chegam a 9,6% do PIB brasileiro